Frei Rogério Viterbo de Sousa, OFM
Estive lendo, como de costume, um livro da biblioteca do nosso Convento. Abri uma página de forma aleatória e nela um trecho chamou minha atenção. O trecho era de Voltaire, sobre a vida consagrada, e dizia assim: “Eles se juntam sem se conhecerem, vivem sem se amarem e morrem sem chorar”. Fiquei inquieto com meus pensamentos e me perguntava: Será que esta máxima voltairiana teria alguma verdade? Será que não existe mais fraternidade entre nós ou será que o amor fraterno foi legado a segundo plano? Perguntas que inquietaram e muito o meu coração franciscano.
Bem sabemos que a essência de nossa vida franciscana é a fraternidade. Etimologicamente, a origem da palavra fraternidade vem do latim “fraternitas”, “relação de parentesco entre irmãos”. Então o que está nos impedindo de sermos verdadeiramente irmãos? Por que nosso testemunho de vida fraterna já não é mais tão verdadeiro? Por quê?
Para o nosso Seráfico Pai São Francisco de Assis, a fraternidade não é uma ideia, uma teoria abstrata, mas um fato concreto, uma experiência que muda de fato a vida. Para ele, não há fraternidade se não reconhecermos e não aceitarmos a filiação comum com o Pai celeste. Somos todos irmãos porque somos todos filhos do mesmo Pai. Portanto, ninguém é maior ou melhor do que ninguém. Esta verdade nos leva a descobrir que ser franciscano significa ser sempre irmão e sempre viver o Santo Evangelho sem concessões.
“Nisto conhecerão que sois meus discípulos… se vos amardes” (João 13,35). O amor a Deus e aos irmãos é o nosso único e primeiro mandamento. É a síntese da nossa fé e o sinal que pode fazer o mundo e as pessoas acreditarem, o que dá coerência e verdade à nossa existência. O amor fraterno é o único jeito de vivermos a nossa vocação franciscana e a nossa missão. Esta é a memória viva de nosso Senhor Jesus Cristo para a qual fomos ungidos e enviados.
Desta maneira, a nossa fraternidade franciscana deveria excluir quaisquer possibilidades que façam existir apegos ciumentos e imaturos, disputas, rancores, mágoas, invejas, sentimento de vingança e qualquer tipo de maldade, fofoca e indiferença entre os irmãos. Por isso, nossa vida franciscana terá sempre como compromisso o dever de ser um exemplo minorítico de fraternidade, autenticamente cristã, para todas as pessoas.
Li uma vez a história de um rabino que fez uma pergunta aos seus discípulos: “Quando a noite termina”? Queria fazê-los refletir sobre qual é o momento no qual a noite acaba e o dia começa. Dado que não chegavam às respostas satisfatórias, o mestre prosseguiu: “A noite termina quando, olhando o rosto de uma pessoa qualquer, tu reconheces nela um irmão. Até aquele momento é ainda noite no teu coração”!
Não é fácil reconhecer, mas, em algumas situações da nossa vida, parece faltar também uma outra qualidade fundamental da nossa vida franciscana, ou seja, o exercício do perdão e da reconciliação entre nós, da superação dos conflitos, também pessoais, com o diálogo que evita a ruptura das relações, da correção fraterna, feita com amor, justiça e caridade. Se não se pode falar bem de alguém, deveríamos ficar em silêncio e rezar. Isto já faria muita diferença para melhor em nossas relações fraternas. E como faria!
Não podemos esquecer que, pelo estilo de vida franciscana que escolhemos, somos chamados a nos confrontar, constantemente, com o mandamento novo, o mandamento que renova todas as coisas: “Amai-vos como eu vos amei” (Jo 15,12). Acontece, porém, que, em algumas circunstâncias, o dever de contribuir para que haja fraternidade ou as exigências da vida fraterna passam a ser vividas e sentidas como um peso, talvez também como uma perda de tempo diante das outras prioridades de nossos tantos compromissos assumidos, que julgamos serem mais importantes do que zelar pela vida fraterna.
O próprio Senhor disse: “Nisto todos saberão que sois meus discípulos, se vos amais uns aos outros” (Jo 13,35). Precisamos, urgentemente, buscar uma conversão verdadeira e assim resgatar os valores fundamentais da nossa vocação franciscana. Precisamos voltar a estar sempre perto de Deus, e n’Ele fecundar o nosso carisma franciscano para, assim, criar uma verdadeira e duradora fraternidade entre nós.
Vivemos em meio à cultura da produtividade, da competição, da eficiência. Vivemos em um mundo onde imperam a prepotência, a arrogância, a agressividade, a vingança, o ataque, o amedrontamento, a extorsão e a imposição violenta como meios habituais para conseguir os fins que se pretendem. Com isso, a vida e as relações se convertem num campo de batalha contínua e o outro deixa de ser irmão e passa ser um inimigo. Mas não poderia jamais ser assim, entre nós. Não mesmo!
Sei que, neste cenário, torna-se fácil deslizar para um estilo de vida pouco comprometida, no descuido da relação com Nosso Senhor Jesus Cristo, o que vai enfraquecendo a semente de uma vida espiritual sólida e fecunda, mas também no descuido da relação com os outros, conosco mesmos, numa progressiva desvinculação pessoal e fraterna.
Precisamos estar atentos e evitar tudo aquilo que impede a comunhão e a vida fraterna de acontecerem. Evitemos, especialmente, os pecados capitais que, por causa das suas potencialidades maléficas, constituem uma grande barreira que dificulta a experiência da promoção da comunhão fraterna na nossa vida franciscana. É mister saber, com grande sabedoria, evitar, com todas as forças, a soberba, a avareza, a luxúria, a ira, a gula, a inveja e a preguiça. Onde se enraízam estes e outros tipos de pecados, ali nunca haverá espaço para a experiência da comunhão, do amor e da vida fraterna.
A fraternidade, quando bem vivida por nós, nos impedirá de sermos indiferentes diante da gritante necessidade de tantos irmãos e irmãs que sofrem por vários motivos neste nosso mundo. Irmãos e irmãs que sofrem da enorme disparidade econômica entre pobres e ricos, da indiferença globalizada com os mais vulneráveis. A fraternidade resulta do amor e provoca mudança interna na nossa vida e na vida de todas as pessoas. O amor fraterno é fruto do amor que vem de Deus. Só vai entender isso quem se deixar renovar, a cada dia, pela força do Santo Evangelho e pela abertura ao Espírito Santo.
Aprendamos, de uma vez por todas, que o amor fraterno precisa ser entendido na sua abertura a todos os irmãos e não se compactua com as várias formas atuais de descartar ou ignorar as pessoas. A fraternidade, na nossa ótica franciscana, é e sempre será uma forma concreta de amar que vai além de qualquer tipo de barreira, divisão, separação e discriminação.
Que Nosso Senhor Jesus Cristo nos ensine a fazer de nossas vidas dons de amor, de serviço e de fraternidade aos outros. Ensine-nos a viver na graça do amor fraterno e nos dê a perseverança em praticá-lo a cada dia com fervor.
Desejo que minhas humildes palavras, talvez, lhes sirvam para um bom momento de reflexão. Se assim for,
Boa reflexão, então!
Convento São Francisco, Campo Grande, MS, 05 de maio de 2022.