Frei Rogério Viterbo de Sousa, OFM
“Observemos, portanto, as palavras, a vida e a doutrina, o Santo Evangelho daquele que se dignou rogar por nós a seu Pai e manifestar-nos o seu nome”1.
Mês de setembro, mês da Bíblia. Quando penso na Bíblia, me vem à mente a figura do Seráfico Pai São Francisco de Assis. O seu coração estava entrelaçado pelo desejo de viver plenamente a Palavra de Deus. Não dá para falar de sua vida sem associá-la à Palavra de Deus. A Santa Igreja deu a ele o título merecido de “Homo Totus Evangelicus”. Ele viveu radicalmente o Santo Evangelho, puro e sem retoques. Ele comprovou, ao mesmo tempo, que a Palavra de Deus, na sua totalidade e profundidade, é algo possível de ser traduzido em gestos concretos na vida.
Ao ouvir, certo dia, na Igreja de Santa Maria da Porciúncula, a passagem em que os discípulos de Nosso Senhor Jesus Cristo não devem possuir ouro nem prata nem dinheiro, não devem trazer alforje nem pão nem cajado para o caminho, não devem ter vários pares de calçado nem duas túnicas, o Seráfico Pai São Francisco de Assis logo exclamou, transbordando da presença do Espírito Santo: “É isso que eu quero, isso que procuro, é isso que eu desejo fazer com todas as fibras do coração”2.
Este ‘certo dia’, segundo uma tradição que remonta a Tomás de Celano, teria sido o dia 24 de fevereiro de 1208, festa de São Matias. O Pobrezinho de Assis, ao ouvir este Evangelho (Mt 10,5-15 ou Mc 6,7-11 ou Lc 9,1-5), se reconheceu, sua busca encontrou uma resposta e o seu sonho e ideal de vida se tornaram claros.
Para o Seráfico Pai São Francisco de Assis, tocar no Santo Livro que continha a Palavra de Deus era como tocar no próprio Cristo. Ele ensinou-nos que, verdadeiramente, a interpretação mais profunda das Sagradas Escrituras é sempre possível e provém precisamente daqueles que se deixaram moldar pela Palavra de Deus, através da sua escuta, da sua leitura, da sua meditação assídua e principalmente da sua prática. Mediante o seu seguimento radical de Nosso Senhor Jesus Cristo, ele quis ser, com grande confiança, humildade e fidelidade, apesar de suas fragilidades, o Evangelho vivo. Isto tudo foi possível em sua vida, pois quando não se tem nada, Deus se torna tudo e deixa-se sua Palavra habitar totalmente no coração.
Olhando para o seu ensinamento, descobrimos que a Palavra de Deus, que é dom e graça, ao entrar no coração do ser humano, quer não só sensibilizá-lo, mas tornar possível a sua conversão, despertar para a prática da solidariedade e da vivência da justiça, diante da dor e do sofrimento de tantas pessoas. Descobrimos também que a vivência da Palavra de Deus exigirá daqueles que se dispõem a seguir a Nosso Senhor Jesus um esforço constante de renovação da face da terra, num desejo de superação da iniquidade, da violência, da injustiça, da desigualdade, da maldade e do egoísmo, tão presentes no mundo.
Como é maravilhoso perceber que existem pessoas de fé viva, lúcida, atuante e consequente. Nunca será demais repetir o atraente desafio que o exemplo do Seráfico Pai São Francisco de Assis provoca em nosso coração, através do seu louco, apaixonado e ardoroso amor para com Deus, para com as pessoas e para com todas as criaturas. Tudo isto fundamentado na vivência fiel e radical da Palavra de Deus.
Por vezes me vejo pensando: como haveríamos nós de viver de forma diferente, senão desta maneira franciscana? Porque não amar e praticar a Palavra de Deus com grande intensidade e fidelidade? Sei que, se nós observássemos mais a Palavra de Deus, certamente a nossa vida mudaria para melhor. O nosso jeito de viver franciscanamente e de criar proveitosos diálogos seriam pautados na vivência sem glosas da Palavra de Deus. Por exemplo, como seriam as nossas conversas, os nossos comentários em relação à vida de alguém e as nossas reflexões, se puséssemos em prática a Palavra de Deus? O apóstolo São Paulo nos dá um conselho: “De vossa boca não saia nenhuma palavra maliciosa, mas somente palavras boas, capazes de edificar e de fazer bem aos ouvintes (…) Desapareça do meio de vós todo amargor e exaltação, toda ira e gritaria, ultrajes e toda espécie de maldade. Pelo contrário, sede bondosos e compassivos uns para com os outros, perdoando-vos mutuamente, como Deus vos perdoou em Cristo”3.
Podemos então perceber que, praticando a Palavra de Deus, seguramente o nosso jeito franciscano de viver o dom da fraternidade, o jeito das nossas conversas e de nossas reflexões seriam bem diferentes e iriam produzir sempre um bom testemunho. Isto seria possível se houvesse mais atenção à Palavra de Deus. Por causa da Palavra de Deus vivida a cada momento, nós seríamos capazes de ser bem mais irmãos e de, verdadeiramente, estimar-nos uns aos outros. Não tenho dúvida nenhuma de que estas realidades seriam sempre possíveis. São Paulo nos ensina também que “O amor seja sincero. Detestai o mal, apegai-vos ao bem. Que o amor fraterno vos una uns aos outros, com terna afeição… Abençoai os que vos perseguem, abençoai e não amaldiçoeis… A ninguém pagueis o mal com o mal”4.
Todos sabemos, também, que o cuidado com o modo de falar e com a linguagem a ser usada estão insistentemente presentes na Bíblia. A Palavra de Deus nos ensina através de diversas passagens este cuidado. Lendo o Livro dos Provérbios, encontramos vários ensinamentos. Por exemplo: “Quem é insensato no falar se arruína” (10,8); “No muito falar não faltará o pecado, ao passo que é muito prudente quem modera os lábios” (10,19); “Falastrão falando dá golpe de espada, a língua dos sábios produz a cura” (12,18); “Quem guarda a própria boca preserva a vida; quem se descuida no falar causa a própria ruína” (13,3); “Uma resposta calma aplaca a ira, a palavra dura atiça o furor” (15,1); “Língua pacificadora é árvore de vida, mas a ambiguidade quebranta o espírito” (15,4); “Morte e vida estão no poder da língua; quem sabe usá-la comerá de seus frutos” (18,21); “Não respondas ao insensato segundo a sua insensatez, para que não te faças semelhante a ele” (26,4).
No Livro do Eclesiástico, encontramos também sábios conselhos em relação ao cuidado no falar a respeito da vida de nossos irmãos e de irmãs: “Não litigues com o tagarela: não jogues lenha na sua fogueira” (8,3); “É terrível, em sua cidade, o homem de língua solta; quem é temerário nas palavras será odiado” (9,18); “Antes do julgamento examina a ti mesmo” (18,20); “Na boca dos estultos está o seu coração, enquanto no coração dos sábios está sua boca” (21,26); “Quando o ímpio maldiz o adversário, é a si mesmo que maldiz” (21,27); “Com o boato, mancha sua alma e será odiado por todos; também quem permanecer com ele será odiado” (21,28); “Tua boca não se habitue a grosserias descontroladas, pois nelas sempre há pecado” (23,13); “Quem se habituou a destratar os outros não se corrigirá pelo resto dos seus dias” (23,15).
Bom, são apenas alguns exemplos de que tudo indubitavelmente seria melhor se, no nosso coração franciscano e na nossa vida, a Palavra de Deus pudesse ocupar com primazia o seu lugar. Quando lemos estes e outros textos, no final de cada leitura dizemos sempre: Palavra do Senhor. Se assim dizemos, porque cremos que seja, espero que Ela receba de fato todo amor e atenção através de nosso jeito franciscano de vivê-la cada dia, com toda a nossa alma e o nossa coração.
Recordo-me do salmista dizendo “Escondi a tua palavra no meu coração, para não pecar contra ti”5. “Esconder a palavra no coração” foi sempre um recurso usado pelos cristãos em épocas de perseguição e de dificuldades, mas quantos de nós realmente nos preocupamos em guardar a Palavra de Deus no coração para não pecar contra Deus? Espero que todos nós, pois sabemos que assim, franciscanamente, devemos em todo tempo fazer.
Não podemos jamais nos esquecer de que o Seráfico Pai São Francisco de Assis amava e praticava com fidelidade a Palavra de Deus. Ela estava definitivamente inscrita no seu coração e na sua alma. Por isso, lembremo-nos incessantemente que “A Palavra de Deus é viva, eficaz e mais penetrante que qualquer espada de dois gumes. Penetra até dividir alma e espírito, articulações e medulas. Julga os pensamentos e as intenções do coração”6. Que o Senhor nos ensine a viver a sua Palavra com o mesmo amor, radicalidade e fidelidade que o Seráfico Pai São Francisco de Assis a viveu!
Desejo que minhas humildes palavras, talvez, lhes sirvam para um bom momento de reflexão. Se assim for,
Boa reflexão, então!
Convento São Francisco, Campo Grande, MS, 02 de setembro de 2020.