Frei Rogério Viterbo de Sousa, OFM
Como Igreja, estamos em plena Campanha da Fraternidade no Brasil, neste tempo quaresmal. Neste ano, somos convidados a olhar, de modo mais atento e detalhado, para a vida. A vida que é dom e compromisso. Papa Francisco, em sua mensagem aos fiéis brasileiros, para celebrar o início da Campanha da Fraternidade, na Quarta-feira de Cinzas, e para inspirar-nos neste período da Quaresma, disse: “Por isso, estejamos certos de que a superação da globalização da indiferença (cf. Exort. Ap. Evangelii Gaudium, 54) só será possível se nos dispusermos a imitar o Bom Samaritano (cf. Lc 10, 25-37). Esta parábola, que tanto nos inspira a viver melhor o tempo quaresmal, nos indica três atitudes fundamentais: ver, sentir compaixão e cuidar. À semelhança de Deus, que ouve o pedido de socorro dos que sofrem (cf. Sl 34,7), devemos abrir nossos corações e nossas mentes para deixar ressoar em nós o clamor dos irmãos e irmãs necessitados de serem nutridos, vestidos, alojados, visitados (cf. Mt 25, 34-40)”.
Neste cenário em que o mundo se encontra, de enfrentamento da pandemia do novo coronavírus, onde a preocupação tantas vezes gravita somente ao redor da própria vida, onde álcool em gel, máscaras, água e sabão e papel higiênico parecem ter se tornado nossas maiores prioridades, aproveito a quarentena para fazer dela minha penitência quaresmal. Usar deste tempo de parada para pensar e repensar algumas verdades importantes do mistério da vida e da complexidade em vivê-la com profundidade e sem se esquecer da prática da caridade. Verdades que me levaram a voltar o meu olhar para a situação daqueles que são invisíveis aos olhos da sociedade e de muitos políticos do nosso governo: os irmãos e irmãs nossos, que enfrentam diariamente a sua luta para poder sobreviver em meio à pobreza, na maioria das vezes sem o devido cuidado de uma política justa, sem as mínimas condições de vida digna e suportando a dor da indiferença.
Todos queremos ter vida feliz e também queremos ter todas as condições para que isto aconteça. Queremos nossos direitos respeitados. E neste tempo difícil, queremos conservar a nossa vida e de nossa família. Para alcançar isto, agimos até mesmo sem pensar no próximo. Salve-se quem puder! Mas, e os pobres? Como fica a sua situação? Além de Deus, quem irá socorrê-los? Nós que somos cristãos sabemos que a conservação da própria vida, em situações delicadas como a que vivemos, somente será válida sempre e quando tiver como fim a justiça plena que deve conduzir à prática da verdadeira caridade. O medo que sentimos parece nos fazer ficar indiferentes ao clamor dos pobres e sofredores. Chego à conclusão de que é tempo de transformar a força do medo em força da caridade.
Assim, mesmo em tempos difíceis como os que estamos passando, não devemos nos fechar no egoísmo e olhar somente para nós mesmos e para as nossas necessidades, ficando indiferentes, ignorando e negligenciando o cuidado devido para com aqueles que já são sofredores por causa do desamor, da pobreza, da indiferença e do abandono (cf. Lc 10,29-37). O Senhor Jesus Cristo nos ensinou como devemos fazer. Sua Palavra nos incomoda e ecoa em nossos corações, para nos dizer hoje e sempre: “Eu estive com fome e me destes de comer, estive com sede e me destes de beber, fui estrangeiro e me acolhestes, estive nu e me vestistes, fiquei doente e me visitastes, estive na prisão e me fostes ver (…). Toda vez que fizestes isso a um desses mais pequenos dentre meus irmãos foi a mim que o fizestes!” (Mt 25,34-40).
Como bons cristãos que procuramos ser, não podemos fugir de nossa responsabilidade de praticarmos os ensinamentos que o Divino Mestre nos deixou e nos convida a repeti-los com o seu mesmo amor. Quando agimos movidos pelo amor ao próximo, pela caridade verdadeira e constante, através da vivência do Santo Evangelho, estamos cumprindo de modo mais perfeito a justiça divina, que tem como fundamento a lei do amor. Socorrendo quem precisa, nós faremos dom de nós mesmos por amor. Sempre por amor, que deve ser a condição única exigida àqueles que querem servir.
Como falar de amor ao próximo, de caridade, de serviço aos necessitados e não nos lembrarmos do Pobrezinho de Assis, São Francisco, o Irmão de todo irmão e de toda irmã?! Ele nos ensina: “Se és generoso e cortês com os homens de quem não recebes nada, a não ser favores transitórios e vazios, é justo que, por amor de Deus, que é generosíssimo em retribuir, sejas generoso e cortês também com os pobres” (Legenda dos Três Companheiros 1,3).
Ao sublinhar a vivência da virtude da caridade, São Francisco de Assis soube vivê-la plenamente, pois compreendeu e viveu coerentemente a Palavra de Jesus Cristo. Porque viveu com toda radicalidade a Palavra e os ensinamentos de Jesus Cristo, soube demostrar com atitudes sempre fraternas e caridosas toda dedicação, desvelo e amor para com o próximo. Amou com atitude incessante os pobres e os serviu na gratuidade e bondade de seu humilde coração.
A caridade de que falo é mais do que ter dó, é mais do que manifestar uma atitude de dar esmola. A caridade que Jesus Cristo ensinou e São Francisco de Assis tão bem viveu tem mais a ver com um compromisso com a dor do outro, de se colocar no lugar do outro, de não ter medo de se aproximar e manifestar a verdadeira misericórdia, de ter compaixão e de servir. Podemos e devemos ser capazes de praticar esta forma intensa e contínua de caridade. A caridade que, de fato, ajude pelo menos a melhorar a condição de vida dos pobres e necessitados e a sanar as situações estruturais da desigualdade social, que parece não ter fim neste nosso país.
Se, em nossa caminhada de fé, percebermos que temos nos afastado do nosso próximo e buscando desculpas para não ajudar quem mais precisa, estamos nos afastando de Deus. Isso é uma grande verdade, que não podemos fazer de conta que não sabemos. Não podemos ignorar a força de um “Coração que vê” e atua em consequência desse olhar, como é o Coração de nosso Deus.
Quando pensarmos que não podemos fazer caridade, seja por qual motivo for, reflitamos por um instante que Deus nos amou de tal forma, que não podemos ser omissos a este Amor, que nos inspira a sermos capazes de fazer a caridade. A fé que toma consciência do Amor de Deus não pode ficar indiferente ao grito dos pobres e dos que precisam. Como diz Santa Tereza de Calcutá: “Não podemos nos sentir satisfeitos apenas ao dar dinheiro. Dinheiro não é o suficiente, dinheiro pode ser ganho… As pessoas precisam de nossos corações”. O Santo Padre, o Papa Francisco, também nos lembra, durante um discurso pronunciado na visita em 10 de setembro de 2013, que fez para mais de 400 refugiados do Centro Astalli, em Roma: “Somente a acolhida não basta. Não basta dar um sanduíche, se não for acompanhado da possibilidade de aprender a caminhar com as próprias pernas. A caridade que deixa os pobres assim como são, não é suficiente. À misericórdia verdadeira, aquela doada e ensinada por Deus, pede a justiça, pede que o pobre encontre o caminho para deixar de ser como é”.
Não podemos ficar indiferentes e fingir que não temos nada a ver com isso. O projeto de vida plena e abundante de Jesus Cristo é fascinante! É o projeto da unidade, do amor, da justiça e da fraternidade. Deste projeto ninguém deveria ficar fora ou ser deixado para trás. O mundo está cheio de pessoas feridas, jogadas à beira do caminho e deixadas para trás. Jesus Cristo espera que tenhamos atitudes coerentes com a fé que professamos em sua Pessoa e com a caridade que ela nos inspira, para que aconteça um mundo novo e nele nasça a Civilização do Amor.
São Clemente de Roma, na sua Carta aos Coríntios, escreve assim a respeito da caridade em geral e do Amor de Jesus: ”A caridade não tolera a divisão, não provoca revolta. A caridade faz tudo na concórdia. Na caridade, todos os eleitos de Deus são perfeitos. Sem a caridade, nada é aceito por Deus. Na caridade, Deus nos assumiu para si. Pela caridade que tem para conosco, nosso Senhor Jesus Cristo, obediente à vontade divina, por nós entregou seu sangue, a sua carne, por nossa carne, a sua alma, por nossa alma” (in: Liturgia das Horas, vol. III, p. 74).
Precisamos reaprender a amar e servir os pobres, os sofredores e os necessitados deste nosso tempo. Eles são os nossos irmãos e sempre o serão. Amar os pobres, respeitá-los e reconhecer a sua dignidade, eis o nosso sagrado compromisso. Ver em sua pessoa a própria imagem de nosso Senhor Jesus Cristo, eis o nosso ideal. Em uma homilia de Natal em Milão, o Cardeal Montini declarou: “A visão completa da vida humana à luz de Cristo enxerga no pobre algo mais do que apenas um necessitado; enxerga nele um irmão misteriosamente revestido de uma dignidade que obriga a lhe tributar reverência, acolhê-lo com presteza, compadecer-se dele além do mérito”.
Bom, durante o processo de feitura deste texto, pude perceber que os pobres não podem esperar, pois a sua fome, a sua dor e os seus sofrimentos, não esperam. Trocando em miúdos, a caridade não é antes e nem é depois, ela precisa ser agora e sempre!
À vista disto tudo, suplico humildemente a quem estiver lendo ou irá ler este humilde texto, que tem a pretensão de suscitar o dom da caridade, que não temamos manifestar a caridade, a solidariedade e a esperança. Superemos com urgência toda forma de indiferença e de egoísmo! Façamos isso, porém, de modo prudente e em consonância com as orientações recebidas para o contexto que estamos atravessando nesse período que pede urgentemente a nossa caridade e a nossa solidariedade.
Por fim, faça cada um a sua parte nessa grande empreitada, onde a caridade é compromisso de todos nós. Rezemos pelo mundo inteiro, em especial pelas vítimas desta pandemia e pelos profissionais que incansavelmente trabalham noite e dia por uma solução e pelo cuidado de quem precisa. A caridade começa num coração que tem muito amor e termina num outro coração que precisa de muito amor.
Que estas minhas humildes palavras, talvez, lhes sirvam para um bom momento de reflexão. Se assim for,
Boa reflexão, então!
Convento São Francisco, Campo Grande, MS, 30 de março de 2020