Missão Franciscana do MT e MS

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Artigos › 17/11/2022

A vocação e o sentido da vida

Ademir Guedes Azevedo, cp.

(missionário passionista e mestre em Teologia Fundamental na Pontifícia Universidade Gregoriana.)

Qualquer que seja o estado de vida em que nos encontramos ou que desejamos alcançar, é necessário sentir-se consolado interiormente com ele. Sentir-se feliz, contudo, não dispensa jamais as crises e a criatividade para responder às grandes perguntas que a vida nos põe. Isso faz parte da realização do projeto pessoal para o qual são dedicados anos de esforço e sacrifícios. Para atingir um grande objetivo é preciso concentração, renúncias e renovação diária do propósito.

Não é banal afirmar que Jesus tinha seu projeto de vida. Em Lc 4,18 lê-se: “O Espírito do Senhor está sobre mim, porque Ele me ungiu para pregar a Boa Nova aos pobres. Ele me enviou para proclamar a liberdade aos presos e recuperação da vista aos cegos, para libertar os oprimidos”. O ministério e a vida de Jesus miravam este objetivo. Mas vale observar, no entanto, os obstáculos e até mesmo os vários momentos de contradições que Jesus teve que experimentar. Não é possível uma interpretação da ação evangelizadora de Cristo abandonando a sua Kenosis e a sua Cruz, pois estes são aspectos inerentes de sua missão.

A kenosis é a participação suprema de Deus na vida humana. É a passagem do Tudo (divindade) ao Nada (despojamento e serviço). Neste trânsito divino, há sempre a experiência de limitação, pois se experimentam as categorias de tempo e espaço. De igual modo, a Cruz traz para Jesus a fúria humana e o silêncio de seu Deus que emerge numa pergunta perturbadora: “Meu Deus! Meu Deus! Por que me abandonaste? (Mt 27,46). Em ambos os momentos, encarnação e cruz, há um mergulho no Nada da existência, mas é só por esse caminho que uma vocação pode amadurecer e encontrar a sua razão de ser. Justo aqui nos ilumina a afirmação bíblica: “Depois olhei e vi no meio do trono e dos quatro seres viventes e no meio dos anciãos, um Cordeiro. Estava de pé, mas parecia ter sido imolado” (Ap 5,6). Imolado porque abraçou a kenosis e a cruz, mas em pé para sinalizar que a plenitude do sentido da vocação é o resultado maduro da superação de nossos calvários cotidianos.

O que este paradoxo tem a ver com a condição humana contemporânea na qual vivemos? As nossas sociedades retiraram do centro da existência a etapa do sofrimento. Apegaram-se a uma dimensão meramente parcial da vida e assim não podem amadurecer com lucidez porque não se interessam em abraçar a sua dor e vencê-la com criatividade. Tudo é aparente. A juventude não se vive em sua provisoriedade e não se quer aceitar a velhice; a beleza é tida só em sua exterioridade e não em sua globalidade que alcança o interior da pessoa. O projeto de vida ou a vocação, deve levar em conta a kenosis e a Cruz para ser autêntico. Por isso, haverá sempre na vida cristã uma especial atenção ao apelo de Jesus: “Se alguém quer vir após mim, negue-se a si mesmo, e tome cada dia a sua cruz, e siga-me” (Lc 9,23).

Não é à toa que testemunhamos hoje nos seminários e nas casas de formação a dependência excessiva por clínicas psicológicas e psiquiátricas. Em determinado momento da vida, tal acompanhamento se faz importante, até para ajudar os candidatos a terem um melhor autoconhecimento de si mesmos. Mas a dependência prolongada parece ser um sinal vermelho que nos provoca a refletir mais sobre a nossa atual e frágil condição humana.

No caso específico da vocação à Vida Religiosa, quero propor um estilo de vida missionário como caminho alternativo para a realização do projeto de vida. A vida missionária nunca é estática, mas sustentada sobre a itinerância e isso requer sempre uma sadia predisposição para enfrentar obstáculos com criatividade. Trata-se de um estilo cristológico, pois como Cristo (o Ungido) percorre as estradas levando uma notícia de libertação e jamais renuncia a cruz que chega como consequência dos gestos proféticos.

A vocação amadurece progressivamente e, para tanto, nunca deveria estacionar-se pois corre o risco de esquecer a sua razão de ser. O estilo missionário faz despertar a memória do que somos e do que devemos alcançar. Sempre quando a vida religiosa procura preparar seu ninho e conforto, ela relega ao esquecimento o seu objetivo: aquele de ser um sinal de contradição no mundo. O ninho é sempre cômodo, mas a cruz e a kénosis são mistagógicas, visto que nos falam de um mistério maior, ao qual um dia prometemos servir.

O sinal mais eloquente de uma vocação madura é aquele da liberdade. É neste sentido que ainda são válidos os conselhos evangélicos de pobreza, castidade e obediência. Eles ajudam a discernir e a tomar as decisões mais coerentes para a vocação. A pobreza evangélica faz o missionário abandonar-se ao mistério que nos cuida, mesmo quando nos sentimos desolados e sozinhos no caminho. De igual modo, a obediência remete para uma fé que, mesmo quando a vida parece ser pesada e quando tudo não se apresenta com tanta clareza e reina a dúvida, é necessário insistir em caminhar no escuro, com perseverança e esperança, pois um dia a luz brilhará mais forte em nossas noites. A castidade pelo Reino nos faz conhecer rostos até então desconhecidos, à medida que nos deixamos afetar pelas histórias que vamos escutando nas pausas que fazemos em nosso itinerário missionário.

Quem de nós quer experimentar essa liberdade que jorra de um estilo missionário? Será que este assunto pode entrar nas pautas de nossas congregações? A liberdade como sinal de uma vocação madura está no horizonte dos jovens que frequentam nossas casas de formação? Será que os formadores transmitem isso? Tem ainda espaço no coração deles a vida missionária, sustentada pela kenosis e a cruz?


Fonte: Província Franciscana da Imaculada Conceição do Brasil

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