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Artigos › 21/04/2021

Clara corajosa mesmo doente

Frei Almir Ribeiro Guimarães, OFM

Continuamos a leitura do livro Chiara di Assisi de Chiara Giovanna Cremaschi. Estamos na década de vinte. A autora escreve sobre as enfermidades de Clara e de Francisco e evoca outros pormenores a respeito da vida de São Damião nesse tempo, de modo especial o trabalho.

1. Em 1224 acontece alguma coisa que passou a marcar profundamente a realidade de São Damião. Clara fica doente. Tal fato poderia até ter posto termo à aventura de São Damião. Não sabemos qual teria sido essa doença. Do Processo nada se pode deduzi de muito preciso a esse respeito. O que se sabe é que Clara precisava ficar de cama, por períodos mais ou menos prolongados. No dito Processo Pacífica diz: “Interrogada desde quando tinha começado esta longa enfermidade de Santa Clara, respondeu que pensava que fossem vinte e nove anos”. Esse dado é importante. Tudo o que Clara realizou durante longo tempo foi feito por uma pessoa enferma. Em tal condição, ela consegue admiravelmente orientar uma “sororidade” sempre mais numerosa, sustentar uma luta incessante na defesa de seu estilo de vida e preparar uma Regra. Em seus depoimentos no Processo, as irmãs sempre têm a enfermidade como ponto de referência. Relatam fatos que se deram antes ou depois do começo da doença. Até aquele momento era a Madre que cuidava das irmãs doentes, a partir de então são as irmãs que dela cuidam Suas co-irmãs lhe oferecem um colhão de palha, dão sumiço nos instrumentos de penitência e Clara aceita tudo persuadida de viver assim na obediência

2. Ela nunca se queixará de sua enfermidade física. Nesse momento, no entanto, sofre de outro sofrer, ou seja, com o agravamento do estado de saúde de Francisco depois dos acontecimentos que se tinham dado no monte La Verna. Pensemos, nesse contexto, no fato de que Francisco compôs os Louvores ao Deus Altíssimo naquelas condições, o que revela o abismo da mística vivida por Francisco naquele momento. Ele cantou o Deus altíssimo, no meio de seus sofrimentos com todo o coração, com todos os adjetivos e superlativos. À Clara chega eco de todos esses acontecimentos. Com sua intuição, ela vai mais longe, compreende muito bem a profundidade da experiência de Francisco e pressente o fim que se avizinha. O Poverello não revela os segredos do Rei. Clara adivinha o que se passa no coração de Francisco mesmo antes que ele chegue a São Damião. Os dois se estimavam e se conheciam.

3. Estamos na primavera de 1225. Não sabemos como aconteceu o encontro com Francisco. Ele sofre terrivelmente com a doença das vistas que o tornou cego e incapaz de voltar-se para a luz. Em todo caso os dois se encontram no amor de Cristo que se entregou inteiramente, tanto a um como ao outro. São dois irmãos no pleno sentido da palavra. Clara e Francisco, neste momento, vivem a graça de participarem, os dois, dos sofrimentos de seu amado. Na cabana ao lado de São Damião, Francisco vive num constante nevoeiro, não somente pela cegueira, mas também pela angústia de ver os ratos passando por seu corpo. Numa noite de aflita súplica àquele que tudo pode, Francisco obtém de Deus a certeza da salvação. Exteriormente, nada tinha mudado, mas seu coração é habitado por uma nova alegria. Nesse momento, o Poverello canta louvando o Senhor por aquelas criaturas que agora ele não pode ver. Nasce a mística poesia do Cântico do Irmão Sol.

4. Tudo isso está acontecendo a dois passos da casa de Clara. Espontaneamente nos perguntamos porque ela não está presente nas palavras de seu irmão e pai? Chiara Giovanna Cresmaschi assim tenta explicar: “Tal ausência pode ser uma confirmação da disparidade existente entre o sentir de Francisco e de sua plantinha, que ele nunca menciona em seus escritos. Vários autores, no entanto, viram no Cântico veladamente a humilde Senhora de São Damião com suas irmãs na irmã lua e nas estrelas. Todas essas claridades fazem pensar em Clara. Da mesma forma se pode ver clara na água muito útil e humilde e preciosa e casta”.

5. Para além de tudo isto, elementos que apontam para Clara, pode-se dizer que ela seja a alma do Cântico. Francisco está imerso nas trevas da cegueira. Nesse contexto, ele consegue compor um poema-oração cheio de claridade, como alguém que naquele momento estivesse vendo flores e verduras, sol e lua. Clara certamente entregava a Deus a história e a vida de Francisco e também o destino de sua comunidade. Tudo isso é claridade, luz divina que esteve presente na hora da composição de uma das mais belas obras literárias de todos os tempos. Clara ali estava também, sempre discretamente.

6. Em 1225, quando entrou no mosteiro Irmã Angeluccia de Messer Angeleio de Espoleto, disse sob juramento que “dona Clara de santa memória estava enferma e que, apesar disso se levantava do leito e vigiava em oração com muitas lágrimas. E fazia o mesmo de manhã por volta da Terça”. A religiosa assinala que ficava impressionada com o cuidado da Madre no tocante à oração e à centralidade de Deus em sua vida. As lágrimas que acompanhavam a oração são assinaladas por muitas das irmãs: indicam a condição de pecadora perdoada, continuamente mergulhada na misericórdia do Pai, de outro lado, Clara foi cada vez mais penetrando no mistério da Paixão de Cristo e nessa mística do padecer com o Senhor. Não devemos ver nessas lágrimas manifestação de um vazio sentimentalismo. Quando uma pessoa se entrega a Deus o faz com toda a sua interioridade, toda a sua pessoa é envolvida e entra no dinamismo pascal. Irmã Angeluccia evoca dois momentos de oração: a noite, tempo propicio para vigiar colocando-se ao lado de Jesus em Getsêmani e a Terça, nove da manhã, momento em que se deu a descida do Espírito Santo, invocado ao longo da jornada, como primeiro protagonista da vida interior, do deixar-se amar por Deus.

7. Durante o dia Clara, sentada em sua paupérrima cama, dedica-se assiduamente ao trabalho como testemunham várias de suas irmãs. Ouçamos irmã Pacífica: “disse que depois que ela ficou doente, de não poder levantar-se da cama, fazia com que a erguessem para ficar sentada e sustentada por alguns panos por trás das costas e fiava, tanto que com o seu trabalho fez confeccionar corporais e os enviou para quase todas as igrejas da planície e dos montes de Assis – Interrogada como sabia dessas coisas, respondeu que a via fiando e fazendo o pano e quando as Irmãs o costuravam, eram mandados por mãos dos frades às sobreditas igrejas e eram dados aos sacerdotes que lá apareciam” (Proc 1, 11) em São Damião.

8. Transparece nesse depoimento uma das dimensões da vida da comunidade de São Damião que era a do trabalho. “As irmãs a quem o Senhor deu a graça de trabalhar trabalhem com fidelidade e devoção, depois da hora de Terça, em um trabalho que seja conveniente à honestidade e ao bem comum, de modo que afastando o ócio, inimigo da alma, não extingam o espírito da sana oração e devoção, ao qual as outras coisas temporais devem servir” (Regra 7, 1-2). Para Clara, o trabalho é uma graça, um dom que Deus concede no sentido se se trabalhar na obra da criação. Essa graça não deseja perder mesmo no tempo da doença. Em São Damião, as irmãs se dedicam ao trabalho a partir das nove da manhã. Não se diz quando ele terminava. Havia interrupção para recitação da hoje Sexta até pelas quatro da tarde, quando eram recitadas as vésperas, cujo inicio variava segundo as estações porque ligado ao por do sol. As fontes não dizem que, no verão, havia uma pausa para o descanso.

9. Voltando ainda ao trabalho de Clara devemos reter que para Clara era de máxima importância não extinguir o Espírito, mas deixar-se guiar por ele num contínuo dom de si, num estar constantemente na presença do Senhor que o rezar sem cessar. Ocupava-se da atividade de fiar, trabalho tipicamente feito por mulheres até o início do século XX, mas com uma finalidade específica: atender as igrejas pobres da região. Pelo depoimento de Irmã Pacífica ficamos sabendo que as irmãs costuravam o tecido fiado por Clara. Como se tratassem de alfaias de igrejas, provavelmente deviam esses corporais terem também bordados. Provavelmente eram os frades esmoleres que levavam aos padres os trabalhos feitos pelas irmãs.

10. Irmã Pacífica acrescenta que alguns sacerdotes vinham pessoalmente a São Damião. Talvez eles tenham sabido que as irmãs faziam esses corporais e como nunca os tivessem recebido vinham buscá-los pessoalmente. Pode mesmo ser que esses padres frequentassem o lugar para oração ou então viessem buscar aconselhamento. O trabalho realizado pelas irmãs era tarefa que correspondia a uma necessidade. Vejamos o testemunho de Irmã Benvinda de Perúgia: “Dos corporais feitos com o que fiava, disse o mesmo que tinha sido por Irmã Pacífica, testemunha já ouvida. Mas acrescentou que ela mandou fazer bolsas de cartão para guarda-los, as fez forrar com seda e mandou benzê-las pelo bispo” (Proc 2,11). Essas observações nos deixam acreditar que as irmãs iam se tornando especialistas na confecção de trabalhos destinados ao culto. A alusão à bênção do bispo parece dizer que o contacto com ele nunca foi interrompido. A propósito dos corporais, Irmã Francesca observa ter contado cinquenta (Proc 9,9). Insistimos: todo esse trabalho era benévolo.

11. Por meio dessas observações, as irmãs colocam em destaque o amor e dedicação de Clara ao trabalho, do qual não se sente dispensada mesmo com a doença. Clara e Francisco não têm a ideia de retribuição como nos a temos. O senso de gratuidade que caracteriza a madre faz com que cresça na gratuidade e no reconhecimento da acolhida dos dons da Providência. Através da Forma de Vida de Clara se deduz um outro tipo de trabalho realizado pelas irmãs e ao qual se dava uma recompensa depois distribuída em proveito de todas.


Fonte: Franciscanos – Província Franciscana da Imaculada Conceição do Brasil (OFM)

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