Frei Rogério Viterbo de Sousa, OFM
Enfastioso de tanta notícia ruim e procurando ocupar a mente com assuntos edificantes, fui à biblioteca conventual para um momento de uma aprazente leitura. Em meio à andança sossegada pelos seus corredores, em uma estante encontrei um pedaço de um velho jornal e nele um artigo muito interessante do sociólogo polonês Zygmunt Bauman, sobre o conceito da “Sociedade Líquida”. Li este artigo com atenção. Nele o autor afirma que vivemos num tempo marcado pela flexibilidade, o qual provoca certa fragilidade no que tange a nossas relações sobre as nossas decisões, as coisas e as pessoas. Disse ele: “Tudo é temporário. É por isso que sugeri a metáfora da “liquidez” para caracterizar o estado da sociedade moderna, que, como os líquidos, se caracteriza por uma incapacidade de manter a forma. Nossas instituições, quadros de referência, estilos de vida, crenças e convicções mudam antes que tenham tempo de se solidificar em costumes, hábitos e verdades “auto evidentes”. É verdade que a vida moderna foi desde o início ‘desenraizadora’ e ‘derretia os sólidos e profanava os sagrados’, como os jovens Marx e Engels notaram. Mas, enquanto no passado isso se fazia para ser novamente ‘reenraizado’, agora as coisas todas – empregos, relacionamentos, know-hows1 etc. – tendem a permanecer em fluxo, voláteis, desreguladas, flexíveis”2.
Tomado de espanto e até de um pouco de medo destes tais “tempos líquidos” que agora vivemos, me veio ao pensamento a questão de como poderemos, então, viver com fidelidade a nossa consagração e a nossa vocação franciscana que são para sempre, conservando o que essencial.
A nossa vida religiosa franciscana vive inserida nesta época de grandes transformações, com profundas mudanças, o que me fez pensar que os desafios que enfrentamos são incontáveis. São tantas mudanças, que parece que estamos perdendo o referencial daquilo que deve ser para nós vital, medular e essencial. Sei que as mudanças são causadas por vários aspectos. Por exemplo, a cultura do provisório, do descartável, as novas tecnologias, as redes sociais e o seu novo jeito de comunicação virtual. Sei também que a chegada das novas tecnologias, como internet, telefones celulares, redes sociais e tantos novos aplicativos, facilitou a comunicação em muitos aspectos, mas por outro lado, trouxe problemas, dependências e vazio existencial que não sabemos como resolver.
Nesta conjuntura, percebo que somos desafiados a buscar com urgência maneiras de como viver a nossa vocação franciscana na sua essencialidade. Talvez mais do que nunca, se torne necessária uma reflexão sincera que nos permita dar uma ressignificação para o nosso ideal de vida franciscana e assim, certamente, poderemos melhor responder aos desafios desta “Sociedade Líquida”. A questão primordial está em saber distinguir entre o que deve permanecer e o que devemos mudar, sem que deixemos perder de vista o que é próprio da nossa vida, da nossa vocação, da nossa fé e da nossa espiritualidade franciscana.
Nesta “Sociedade Líquida”, tudo que é solido parece derreter-se num piscar de olhos. Aprendi isso na leitura do artigo. Hoje está na moda falar e justificar nossas incompreensões deste tempo e de nossa incapacidade de refletir profundamente, a situação da nossa vida franciscana, com afirmações do tipo “Tudo é temporário”, “Hoje os tempos são outros”, “O velho tem que passar”, “Temos que reinventar” e não sei mais o quê. Confesso que vejo um grande perigo nestas afirmações, pois revelam uma realidade complexa a nos afetar. Será que já estamos condenados a viver a cultura do provisório, do descartável, nesta dita “Sociedade Líquida”?
Para Zygmunt Bauman, já vivemos na sociedade líquida, onde as relações, os hábitos, as formas de proceder, mudam em um tempo muito rápido. A vida é resumida na valorização de coisas supérfluas, isto é, a vida sempre se reinicia e a felicidade é passageira. Algo é comprado, logo é descartado. Nós sofremos com este processo de liquidez, pois tudo parece ser provisório para nós também. Nos dias atuais, as relações humanas se tornaram provisórias, os casamentos são provisórios, o trabalho é provisório, as alianças e pactos são também provisórios e, por vezes, interesseiros e oportunistas. Vivemos um clima cheio de incertezas quanto ao futuro deste nosso mundo. Como fazer a nossa forma de vida franciscana e a nossa vocação sobreviverem a este processo de liquidez?
Perguntas difíceis de serem respondidas, pois, às vezes, parece ser melhor não encontrar respostas, para que não precisemos sair da zona de conforto, onde estamos acostumados a ficar. Talvez uma resposta certa pode abrir os nossos olhos e não nos deixar permanecer indiferentes e conformados com esta situação de liquidez. Existe um pensamento que diz que nós “Tornamos nosso mundo significativo pela coragem de nossas perguntas e pela profundidade de nossas respostas.”3 Então, serei ousado e tentarei responder a estas perguntas com a profundidade humilde das verdades que conservo dentro do meu coração franciscano. Sei que não sou dono da verdade e, na minha forma humilde de responder a estas perguntas, recorro àquilo que prometemos fielmente viver no dia de nossa profissão religiosa, que é justamente a nossa Regra de vida franciscana. Ela é a Forma de Vida Franciscana que vale desde 1223, para todos os Frades Menores e, por isso, acredito ser conhecida por todos nós, que devemos até mesmo sabê-la de cor. Mesmo assim, quero citá-la para simplesmente termos o deleite de poder relê-la novamente.
“Em nome do Senhor! Começa a vida dos Frades Menores:
1. A regra e a vida dos Frades Menores é esta, a saber: observar o santo Evangelho de nosso Senhor Jesus Cristo, vivendo em obediência, sem próprio e em castidade.
2. Frei Francisco promete obediência e reverência ao senhor papa Honório e a seus sucessores canonicamente eleitos e à Igreja Romana. E os outros frades estejam obrigados a obedecer a Frei Francisco e a seus ”4
Somos da Ordem dos Frades Menores e o santo Evangelho de nosso Senhor Jesus Cristo é o fundamento de nossa forma de vida franciscana, como podemos ver. Como frades menores, nós acreditamos e procuramos vivê-lo com toda a nossa alma, inteligência e coração. Já dizia Santo Agostinho que “Se você crê somente naquilo que gosta no Evangelho e rejeita o que não gosta, não é no Evangelho que você crê, mas, sim, em si mesmo.”5 Nós cremos e vivemos toda verdade do Santo Evangelho. Sabemos que ele é sempre atual. Seu poder de atualidade não se corrompe. Mesmo neste tempo de “Sociedade Líquida”, ele continua sólido e capaz de ser uma fonte inesgotável para nós. Penso que cada vez que vivermos o Santo Evangelho com fidelidade estaremos testemunhando que nós cremos no amor, no juramento, na vocação, como realidades permanentes e sempre necessárias. Vivendo assim, jamais iremos colaborar com a cultura do provisório e do descartável. A vivência do santo Evangelho gera em nossos corações a alegria e a compreensão da essência da vida franciscana e ela se traduz na dinâmica da vida vivida em fraternidade. O documento da Ordem dos Frades Menores que tem por título “Todos vós sois irmãos” diz assim: “Esta opção de vida, isto é, viver o Evangelho como irmãos, corresponde à obediência à revelação divina. Podemos dizer, pois, que a fraternidade franciscana faz parte de um plano vocacional na vida de Francisco, com o qual ele responde por obediência à vontade de Deus, assumindo o Evangelho como forma de vida.”6
Por falar em fraternidade, nunca poderíamos nos esquecer de que somos uma Ordem de irmãos. São Francisco de Assis utiliza o termo “irmão” em seus escritos 306 vezes, sendo o termo mais usado em suas fontes depois do termo “Senhor” (410 vezes). Percebemos, assim, a importância do “ser irmão” para o Seráfico Pai. É a partir do ser irmão que é construída uma caminhada que traduza o santo Evangelho em atitudes reais. Este estilo fraterno, peculiar, deve nos fazer refletir o sentido da pertença de cada um a esta grande família franciscana, que a Ordem é. Viver uma conversão contínua e total à fraternidade por parte de nós, frades, poderá levar-nos a realizar uma espécie de globalização de todos os valores essenciais de nosso carisma. Somo irmãos e devemos viver de maneira permanente uma relação sempre repleta de amor fraterno e nunca diluído em interesses pessoais ou conveniências que inventamos.
Somos da Ordem dos Frades Menores, digo novamente, e outra realidade fundamental para nós é o amor à pobreza e a minoridade. A pobreza franciscana que nós abraçamos é, antes de tudo, um modo de andar no seguimento de nosso Senhor Jesus Cristo. É o caminho que o Filho de Deus seguiu e que nos revela a grandeza da altíssima pobreza. “Bem amados irmãos, o Filho de Deus era mais nobre do que nós, por nós se fez pobre neste mundo. Por amor a Ele escolhemos o caminho da pobreza”7. Um coração pobre jamais será seduzido por esta maneira ávida de possuir, acumular e
acreditar na felicidade baseada no que é material. Quando vivemos com alegria a pobreza, a cultura do provisório e do descartável perde seu poder de acontecência na vida da gente. Eu creio que sim!
Temos ainda o dom da minoridade, que implica termos um coração limpo, humilde, manso e simples, como nosso Senhor Jesus Cristo propôs e como São Francisco de Assis viveu com toda radicalidade. A minoridade franciscana requer uma renúncia total de nós mesmos e uma disponibilidade plena de nossa parte para Deus e para todos os nossos irmãos e irmãs. E não é só isso.
A minoridade franciscana tem um poder de libertar o nosso coração de qualquer forma de apego, vaidade, egoísmo e ilusão e nos dispõe para um amor fraterno cada vez mais autêntico, que certamente produzirá um grande testemunho dos valores que não passam jamais. Se vivermos, de fato, como irmãos menores, seremos capazes de atitudes de simplicidade e sinceridade, de espontaneidade e franqueza, de humildade e alegria, de abnegação e disponibilidade, de proximidade e serviço, especialmente para com as pessoas mais necessitadas. A minoridade franciscana pode ser um remédio contra a tentação do orgulho, da busca de poder e de uma vida aprisionada numa zona de conforto que inventamos. Ser menor é proteger a vida daquilo que é provisório, é revesti-la de uma solidez, para que não se afogue na liquidez daquilo que é efêmero.
Vou finalizando minhas ponderações a respeito do que para nós deve ser essencial, como forma de enfrentamento para esta maneira de viver imposta pela “Sociedade Líquida”. Que os valores essenciais preservados e eficazes, há mais de 800 anos, da nossa forma de vida franciscana nos ajudem a ser o que precisamos ser, simplesmente frades menores. Que o amor fraterno, o amor pela pobreza, a minoridade, unidos à vivência do santo Evangelho, nos tornem capazes de atitudes que nos ajudem a enfrentar, sem sucumbir, este processo do provisório, do descartável, imposto pela “Sociedade Líquida”. Este enfrentamento exigirá de nós uma imitação mais verdadeira e coerente do nosso Seráfico Pai São Francisco de Assis. Que a nossa atitude seja de fé maior, de uma oração constante e de uma reta obediência, que se traduza no serviço e na presença humilde, capaz de conservar a vida franciscana como num sinal provocante e convincente de vida sóbria, feliz, humilde, profética e desapegada nos dias atuais. Que a nossa fidelidade ao santo Evangelho de nosso Senhor Jesus Cristo, à Santa Igreja, à observância da Regra que professamos, ao acolhimento de todos os nossos irmãos e irmãs, ao cuidado da vida e das criaturas seja força para a nossa missão de viver para franciscanar.
Nesta “Sociedade Líquida” que está a pleno vigor atualmente, não nos deixemos ser aprisionados por suas propostas e seus processos sedutores, repletos de caminhos que conduzem para uma falsa felicidade. Para isto, vivamos sempre, à maneira franciscana, todos os nossos compromissos, sem dar descanso para nossa consciência. Conservemos sempre os valores essenciais da vida franciscana, vivos e latentes em nosso coração e em nossas atitudes, pois, mesmo depois de mais de 800 anos, a inspiração original do Seráfico Pai São Francisco de Assis tem resistido ao tempo e às transformações da sociedade e do mundo em seus insistentes estados de liquidez. Por causa disso, acredito que os valores essenciais de nossa forma de vida franciscana jamais se tornarão provisórios ou descartáveis, porque foram inspirados por Deus e colocados em cada coração que aprendeu ser, eternamente, franciscano. Que o nosso, de fato, seja, com a aprovação de Deus!
Por fim, não nos esqueçamos de que a vida franciscana, vivida no cumprimento da vontade de Deus, não permite que surja nenhum espaço para a ilusão, para a fantasia e para a provisoriedade. Ela procura atualizar, de forma permanente, a presença de Deus na vida do mundo e de todas as
pessoas. Por isso, sigo rezando para que Deus nos ajude a continuarmos sendo conscientemente felizes por sermos franciscanos e por sabermos que não devemos ter medo de gastar a nossa existência pelo reino de Deus, em nome de nosso Senhor Jesus Cristo. Sabem por quê? Porque seu amor por nós não é provisório, não passa jamais, é permanente e não perde nunca a sua validade! O seu amor por nós é eterno e a sua misericórdia é a única liquidez que necessitamos concretamente que seja derramada, abundantemente, em nossa vida. Sigamos em frente, sem temer as nossas lutas e, “franciscanando”, possamos ter bonitas histórias para contar!
Desejo que minhas humildes palavras, talvez, lhes sirvam para um bom momento de reflexão. Se assim for,
Boa reflexão, então!
Convento São Francisco, Campo Grande, MS, 30 de abril de 2020.